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segunda-feira, 31 de maio de 2010

A escravidão medieval.

A presente pesquisa se ateve a duas obras: ‘Escravos e servidão doméstica na idade média’ de Jacques Heers, professor da Sorbone em Paris, renomado acadêmico por seus estudos das estruturas sociais e das mentalidades coletivas; bem como a obra ‘O problema da escravidão na cultura ocidental’ de David Brion Davis, professor de História na Universidade de Yale e presidente da Organization of American Historians. A sociedade medieval é frequentemente estereotipada pela presença de alguns tipos característicos do período. Falar em idade média é falar de uma complexidade a qual fica evidencia pelo seu caráter de longa duração. Há um consenso entre ambos de que a esteriotipação do período a determinados modelos deve-se a restrição do campo de pesquisa à delimitação territorial desta a certos centros europeus, principalmente franceses e partindo desta pesquisa delimitada tentar responder a problemas históricos relativos a toda a Europa.
Ao historiador desavisado pode parecer estranho que uma instituição como a escravidão, depois de desaparecer por séculos ressurja a partir do século XVI com tamanho vigor. Mas é exatamente neste ponto que encontra-se o equívoco histórico, a escravidão nunca deixou de existir como tal até o século XIX, há uma continuidade desconsiderada pela maioria historiográfica que liga a escravidão antiga à escravidão moderna. Desta forma logicamente há um escravidão medieval.
David Brion Davis conceitua escravidão:
“Em , geral costuma-se dizer que o escravo tem três características que o definem: sua pessoa é propriedade de outro homem, sua vontade está sujeita à autoridade de seu proprietário e seu trabalho ou serviços são obtidos por meio de coerção. Como, às vezes, essa descrição podia ser aplicada às esposas e crianças de uma família patriarcal, vários escritores acrescentaram que a escravidão deve se dar “fora dos limites das relações familiares.” Alguns outros atributos derivam da definição de escravo como propriedade móvel. Seu status não depende de sua relação com um proprietário particular e não é limitado pelo tempo ou pelo espaço. Sua condição é hereditária e a propriedade de sua pessoa é alienável.
Como as leis que governam a propriedade do escravo se desenvolveram aos poucos a partir das primeiras civilizações, foi quase universalmente aprovado que o escravo poderia ser comprado, vendido, comercializado, arrendado, hipotecado, legado, doado como um presente, penhorado por um débito, incluído em um dote, ou confiscado em uma bancarrota. Por mais de três mil anos essas características legais da escravidão mudarão muito pouco; e no mundo ocidental foi a lei romana que deu uma forma sistemática e duradoura aos direitos dos senhores e dos escravos.
Na maior parte dos aspectos era conveniente considerar o escravo como objeto, como um ser sem direitos ou família, ou até mesmo com outro nome, dado a ele por seu proprietário. Os romanos simplesmente sistematizavam a pratica de muitas nações quando decretavam que o escravo não podia fazer um testamento ou denúncias formais em acusações criminais ou aparecer como testemunha na maioria das causas cíveis. Mas havia situações em que a lei não podia ignorar os limites humanos do escravo. Os escravos eram universalmente punidos por delitos, e muitas nações lhes permitiam determinados limites legais e lhes proporcionavam, no mínimo, proteção teórica contra assassinato e danos corporais severos. Foi por essa razão que os juristas romanos reconheceram abertamente que o escravo era tanto uma pessoa quanto uma coisa.”
( Davis,David Brion, O problema da escravidão na cultura ocidental, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2001, pg. 49-51)
Esse ‘objeto’ era comercializado na antiguidade, na modernidade e da mesma forma na idade média. O trabalho coercitivo na idade média conheceu várias modalidades conceituais que conferiam ‘status’ diferenciados aos indivíduos sujeitos a essa coerção social. Existiam várias formas de servidão que difere da servidão clássica. Essa aponta que o servo não poderia ser vendido, estando este preso à terra, que, embora exercesse um trabalho coercitivo, a corvéia, esse trabalhador não era comercializado, pois seu estatuto jurídico era diferenciado do escravo. Veja o que diz Jacques Heers:
“Em certas regiões da Itália, terra de observação privilegiada tanto os documentos abundam e fazem, aqui, mais do que lançar alguns raros claros, a confusão entre servos da gleba e escravos da casa, que se verifica mesmo nos fatos onde coexistem os dois tipos de servidão; os textos falam então em muitas vezes dos uomini di masnada. A própria palavra de masnada (em francês, a mesnie ou a livrée) pode na verdade ter – como todas as palavras que se relacionam com as estruturas sociais deste passado “medieval” – mais duma única significação, e isso introduz na interpretação uma parte de incerteza e de ambigüidade. A masnada pode ser, com efeito, ou o conjunto dos parentes que se reclamam da mesma descendência, ou o conjunto dos servos, rústicos ou domésticos que dependem do mesmo domínio senhorial. O que quer que seja, estes servitii di masnada mantem ainda, nas regiões de montanhas, uma importância e um peso social consideráveis nos anos 1300, portanto, muito depois dos grandes movimentos de emancipação nascidos nas comunidades urbanas. No Friuli, por exemplo, os servos dos grandes senhores contam-se às dezenas, até mesmo às centenas. E estes homens de masnada parecem compreender ao mesmo tempo servos rurais e escravos adscritos à casa do senhor; este pode muito facilmente, sem nenhuma restrição, vendê-los ou cedê-los, trocá-los ou hipotecá-los; o mercado se servos de masnada parece bastante ativo, muito mais ativo do que o dos servos da gleba nas regiões situadas mais a oeste, na França , por exemplo. Na verdade, parecem na maior parte nativos da região, portanto saídos de longas descendências de servos; mas outros chegaram recentemente de regiões mais ou menos longínquas, pessoas de Istria e mesmo do Oriente, comprados em Veneza e conduzidos, para um serviço servil, para as terras do interior. Assim a confusão entre herança indígena antiga, autóctone, e o contributo estrangeiro ligado ao trato parece completamente estabelecido; os mesmos termos e as mesmas condições jurídicas aplicam-se aos servos rurais e aos escravos propriamente domésticos; uomini di masnada são por vezes dados pelos seus pais às mulheres nobres por ocasião do seu casamento, como criadas ou damas de companhia.”
(Heers, Jacques; Escravos e servidão doméstica na idade média, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1983, pg. 17)
Situações pouco pesquisadas são apontadas por esse autor, como por exemplo, a servidão exercida por nobres. Como a dívida não paga acarretava em prisão, a alternativa a isso era entregar-se como servo a seu respectivo credor. Contudo, como o pertencimento a aristocracia se devia “ao sangue” e não efetivamente a uma relação de poder econômico, esses nobres que se entregavam voluntariamente a servidão visando burlar a prisão por dívidas, embora servos, permaneciam quanto nobres. Desta forma Heers descreve uma hierarquia estatutária dentro do regime de “servidão”, que de maneira geral era “confundido” mesmo com o regime escravocrata; no que concorda Davis.
“A insegurança e a ausência de direitos do escravo tem sido habitualmente contrastadas ao ‘status’ do servo, sujeito a um lorde particular, ligado a um pedaço de terra, e responsável apenas por obrigações e serviços prescritos. Essa nítida distinção foi pressuposta em teorias do desenvolvimento histórico que caracterizam a ascensão do escravo a colono, servo e camponês livre. No entanto, como veremos, as transições de um estágio para o outro eram raramente bem delimitadas. Não só a escravidão e a servidão coexistiram e se sobrepuseram, mas também os juristas medievais tendiam a confundir as duas condições. Os estudiosos da lei franceses traduziram as palavras servitus e servus do Código de Justiniano como ‘servidão’ e ‘servo’. Eles consideraram o servo francês como legalmente sujeito à autoridade quase absoluta de seu proprietário, e como alienável pela venda, troca ou presente. Do mesmo modo, Bracton identificou os vilões ingleses com os ‘servi’ romanos, e cuidadosamente distinguiu-os dos adscripticii e dos coloni, cujos direitos tinham sido protegidos pelo Estado. Teoricamente, o vilão era escravo que podia ser vendido separadamente do feudo e cujo trabalho não era regulamentado pela lei. Se sua vida não podia ser tirada impunemente por seu senhor, o mesmo era verdade para o escravo romano do Império tardio.
A convicção de que os vilões eram legalmente ligados ao solo foi, parcialmente, resultado de um equívoco que surgiu no século XVI e,mais tarde, corroborou a crença de que a Inglaterra tinha “um ar muito puro para um escravo respirar”. Chegou a ser admitido que os vilões regardants (apegados) a um feudo, enquanto opostos aos vilões in gross ( de modo geral), haviam desfrutado da segurança legal de estarem ligados ao solo. Todavia, na prática, as duas expressões meramente indicaram o modo pelo qual um lorde comprovava seu título a um vilão: se ele possuía um título ou uma confissão de ‘status’, seu vilão era considerado in gross; ao contrário, ele apontava o feudo e pleiteava seu direito normativo. Mas em ambos os casos ele era livre para transmitir ou vender seu vilão como quisesse.
Naturalmente, havia uma enorme lacuna entre o ‘status’ legal do vilão ou do servo e sua condição efetiva em uma sociedade feudal. De acordo com os costumes e as circunstâncias econômicas, de fato o servo era ligado ao solo. Não havia mercado algum para uma força de trabalho móvel, e qualquer incentivo para maximizar a produção das mercadorias agrícolas. Sem dúvida, em geral os servos escaparam das piores pressões e inseguranças da escravidão. Mas um reconhecimento dos efeitos restritivos dos costumes e das condições econômicas só aumenta a dificuldade de chegar a definições precisas da servidão. A palavra “escravo”, quando limitada aos negros, dificilmente tinha o mesmo significado quando aplicada aos trabalhadores do campo, aos cocheiros e aos empregados encarregados da casa; uma variação semelhante nas condições individuais dos escravos pode ser encontrada na maior parte das sociedades. Os termos “servant”, “bondsmam” e “slave” (servo cativo e escravo) frequentemente tem sido aceitos como sinônimos; sem exagero, Catarina, a Grande, referia-se ao campesinato senhorial da Rússia como escravos e não como servos. Nenhuma definição singular conseguiu abranger as variedades históricas da escravidão ou distinguir, com clareza, a instituição, a partir de outros tipos de servidão involuntária.
Além disso, na maior parte das línguas, a palavra escravo tornou-se ainda menos específica, devido ao seu uso metafórico. Assim em Shakespeare: “Deixe-me ser um escravo, para conquistar aquela criada”; “A intenção é simplesmente escrava da memória; “Mas o pensamento é escravo da Vida, e a Vida, do Tempo louco”. Todavia, mesmo esses significados sugerem que os homens sempre reconheceram a escravidão como limite extremo em matéria de dependência e perda da liberdade natural, como aquela condição em que o homem chega mais perto do ‘status’ de coisa.
Mas essa confusão de distinções nem sempre implicou uma elevação de ‘status’. Embora o servo francês fosse protegido pelo costume local e houvesse pouco incentivo para explorar seu trabalho para lucro comercial ou industrial, ele desfrutava de poucos direitos legais não possuídos pelos escravos romanos do Império tardio. Como sugerimos, a renovação da lei romana também renovou o conceito de escravidão que os juristas medievais tomaram como próprio modelo para a servidão . Definido como propriedade móvel, o servo francês era teoricamente subordinado ao poder disciplinar quase ilimitado de seu proprietário. N o tribunal, ele podia testemunhar somente contra outro servo; só se tivesse permissão podia se casar com servo de outro senhor. Sob a lei dos lombardos e dos francos, o filho de pais de ‘status’ diferentes herdava a condição mais baixa; mas, no século XIII, os tribunais franceses, exceto na Borgonha, estenderam a regra romana de partus sequitur ventren para os servos. E ao mesmo tempo que a verdadeira escravidão começara a desaparecer na França ocidental durante o século XI, ela se espalhou, posteriormente, na maior parte das regiões do nordeste e sudeste de Paris, onde durante o século XIV foi o sistema básico de trabalho. Em áreas como a Lombardia e o Piemonte, os escravos domésticos persistiram como uma classe distinta do campesinato dependente; embora a servidão tenha declinado na Alemanha ocidental durante o final da Idade Média, tornou-se uma forma próxima à escravidão no leste entrincheirado do rio Elba.
No Domesday Book, aproximadamente 10% da população registrada foram classificados como inteiramente escravos. Legalmente, nada mais do que bens móveis, aparentemente, essas pessoas podiam ser mortas por seus proprietários sem penalidade; se um homem livre matasse um escravo de outro, ele era responsável somente pelo valor de mercado do homem. E mais, os escravos do Domesday tinham direito, pela lei anglo-saxônia, a rações anuais específicas e, de acordo com os costumes, eram aparentemente concedidos certos direitos à propriedade e ao lazer. Eram também protegidos, em algumas instâncias, pela Igreja, que, como grande proprietária de terras, possuía muitos escravos.
Os vilões constituíam a maior parcela da população inglesa conforme registrado no Domesday Book. O termo villanus, no entanto, é coberto de ambigüidades. Na França, o vilain era um cidadão livre. Os vilões ingleses do século XI ainda retinham certos vestígios de sua liberdade anterior e, às vezes, a palavra referia-se somente a um tipo de posse. Mas aos poucos, villanus passou a conotar um ‘status’ vago de quase total falta de liberdade que era facilmente confundido com escravidão. Embora a sociedade inglesa fosse dividida, de fato, em um número de classes de homens sem liberdade – os coliberti, coceti, cotarii, bordarii, etc. -, Bracton acompanhou o grande jurista de Bolonha, Azo, na afirmação de que todos os homens eram livres ou escravos.
A discrepância entre as instituições inglesas e os conceitos legais romanos torna difícil discutir vilania com alguma precisão. A dificuldade deve-se ao fato de a escravidão verdadeira ter realmente desaparecido na Inglaterra durante o século XIII, enquanto os vilões continuaram a perder o que restava de suas liberdades anteriores. Como escravo, a pessoa do vilão pertencia a seu senhor, que era teoricamente livre para usar ou dispor de sua propriedade de qualquer maneira não especificamente proibida por lei. Entretanto, na prática, o vilão achou proteção na imobilidade econômica feudal. Os costumes lhe garantiam certos privilégios e asseguravam expectativas. A Igreja santificava seu casamento e lhe concedia a dignidade de um ser humano. O código penal fazia poucas distinções entre homens livres e vilões, de modo que, até mesmo Bracton afirmou o princípio de que ao mesmo tempo que um vilão estava sujeito à vontade de seu senhor, ele era livre em suas relações com o resto da sociedade. Isso não era absolutamente verdadeiro, como observara Glanvill. Para os herdeiros ou credores de um senhor, ou para a mulher livre que quisesse se casar com ele, o vilão não era um homem livre. No entanto, sua servidão era peculiarmente circunscrita ao domínio territorial de seu lorde, e limitada pelos costumes e prescrições de uma sociedade orgânica.
No entanto, a questão fundamental é que a vilania dava aos juristas e aos estudiosos uma oportunidade de manter vivos os conceitos romanos de escravidão. Foi o veículo, por assim dizer, que serviu para transmitir noções legais de subordinação total ao início da era moderna. No Dialogus de Scaccario, Glanvill, Bracton e outros juristas menores do final da Idade Média tentaram aplicar a lei romana da escravidão à servidão. Glanvill tentou conformar também vilania à regra romana do partus sequitur ventren, embora durante o final do século XIII o direito consuetudinário regesse que o ‘status’ de servidão passava de pai para filho. No século seguinte, os tribunais decidiram que os bastardos deveriam ser julgados livres, já que o ‘status’ de seus pais era desconhecido. Mas os mesmos juizes que aplicavam o princípio do direito consuetudinário de favor libertatis também continuavam a pensar a vilania como essencialmente equivalente à escravidão romana. Apesar dos efeitos do enclosure, da ampliação dos mercados, da peste bubônica e da Guerra dos Cem Anos, a condição legal dos vilões permaneceu, na verdade, inalterada. Quando uma redução do trabalho e os salários crescentes ameaçaram arruinar todo o sistema feudal, no final do século XIV, os antigos princípios de servidão justificaram leis severas para manter os trabalhadores na terra. As leis, naturalmente, não podiam evitar a transformação econômica. Durante os séculos XV e XVI, os serviços feudais aos poucos deram lugar às rendas, aos livres contratos e aos pagamentos monetários. A verdadeira vilania tornou-se economicamente obsoleta. E, no entanto, o princípio legal da escravidão subsistia como uma arma de controle social. Em 1547, os vagabundos que tentassem escapar do serviço forçado eram marcados na testa com a letra “S”, o que significava que deveriam ser “escravos” pelo resto de suas vidas.
Há um contraste extraordinário entre o destino da escravidão nas partes isoladas da Europa medieval e nas áreas limitadas que mantinham contato comercial e militar com o mundo externo. Quando os sarracenos invadiram a Península Ibérica, o sistema de escravidão existente era muito parecido com o que fora no final do Império romano. Mas a luta contínua entre cristãos e mulçumanos trouxe uma mudança decisiva. Por uns séculos, os dois lados escravizaram prisioneiros da religião oposta. Como a classe servil de cristãos subiu, aos poucos, vários estágios de servidão, a mais baixa ordem de trabalho era ocupada por muçulmanos cativos. Por toda a Península Ibérica, as guerras religiosas mantinham a escravidão ativa como uma instituição vital ao restabelecimento do comércio do Mediterrâneo, com uma continuidade ininterrupta desde os tempos romanos.
Se, de um lado, a escravidão quase desapareceu nos domínios feudais da Europa, por outro, florescia nos centros urbanos de cultura e de civilização como Córdoba e Constantinopla, nos extremos do continente. E revivia e se espalhava com o desenvolvimento do comércio. Nos séculos X e XI, ao descer o Volga e os vales de Dnieper, os mercadores suecos estabeleceram contato com os califas de Bagdá e com o Império Bizantino; levando cera e peles, trocavam escravos por especiarias e seda do Oriente. Os mercadores e príncipes da Rússia de Kiev viam a exploração de escravos como uma de suas principais fontes de riqueza. Ao mesmo tempo, empreendedores venezianos transportavam escravos, capturados ou comprados na costa dalmatense, para os haréns da Síria e do Egito; esse comércio, de acordo com Henri Pirenne, era tão vital à prosperidade de Veneza quanto, posteriormente, o comércio de escravos no Atlântico foi para as economias da Grã-Bretanha e da França.
Bem antes do nascimento de Colombo, os mercadores genoveses e os venezianos inventaram diferentes instituições que, mais tarde, seriam utilizadas no comércio africano e na colonização das Índias Ocidentais. Chegando às costas do Mar Negro, no século XIII, finalmente estabeleceram bases ou feitorias que se tornaram mercados prósperos para a compra de escravos. Como, posteriormente, os portugueses que construíram fortalezas na África ocidental, os italianos não precisavam capturar escravos para as suas. Praças, como Tana, fervilhavam de mercadores tártaros que, ansiosamente, trocavam suas crianças, vizinhos ou cativos por mercadorias preciosas. Os italianos não só criaram sociedades comerciais, estabelecimentos comerciais ou fondachi, e um comércio de escravos altamente organizado, mas na colônia de Chipre estabeleceram ‘plantations’ em que usavam escravos importados no cultivo de cana-de-açúcar. Na verdade, em 1300, havia escravos negros em Chipre, que se tornaram realmente um protótipo para as colônias das Índias Ocidentais. Nas palavras de Charles Verlinden, “A economia escravocrata das colônias modernas é pura e simplesmente a continuação daquela das colônias medievais.” Há muito ainda o que aprender sobre a continuidade entre o comércio do Mediterrâneo e do Atlântico, mas é significativo que as nações mais tarde colonizadas se voltassem para a teoria e práticas comerciais italianas, que houvesse relações de comércio estreitas entre Veneza e Inglaterra, que certos comerciantes genoveses que tinham escravos em Chipre desempenhassem um papel importante no comércio em desenvolvimento no Atlântico, e que os marinheiros e mercadores italianos que estavam familiarizados com o Mar Negro e com o Mediterrâneo oriental fossem atraídos pelas primeiras aventuras de exploração espanholas e portuguesas.
O grande comércio de escravos do Mediterrâneo atingiu seu auge nos séculos XIV e XV. Os tolerantes genoveses supriam os comerciantes sarracenos com navios e escravos cristãos, e até assinaram um tratado com o cã Kamchil de Solgat para a volta dos fugitivos. Tártaros, circassianos, armênios, georgianos e búlgaros desaguavam nos mercados da Itália e da Espanha. O esplendor de Veneza e da Toscana, como o da antiga Roma e o de Atenas, estava estreitamente relacionado com a escravidão. Íris Origo descobriu que, entre 1414 e 1423, nada menos que dez mil escravos foram vendidos só em Veneza. Nos séculos XIV e XV eles constituíram uma proporção significativa da população da Toscana, e, em Florença, era comum os donos de pequenos armazéns e até mesmo freiras e padres possuírem um escravo. E, embora a venda de cristãos fosse eventualmente denunciada como impiedosa e, em 1386, o Senado de Veneza tenha abolido o mercado de cativos na ‘piazza’, era claro que os mercadores desrespeitavam todas as tentativas de regulamentação. Os italianos não sentiam necessidade alguma de defender o comércio do Mar Negro mais do que o de pagãos, judeus e muçulmanos que eles misturavam nos grandes mercados do Oriente. No mesmo período, de acordo com Charles Verlinden, Aragão e Catalunha eram sociedades de escravos de um extremo ao outro, sendo a oferta de cativos muçulmanos na África do Norte aumentada pelos circassianos e georgianos do Mar Negro.
Assim, no final da Idade Média havia sociedades de escravos ao longo das principais rotas de comércio da Rússia e do Egito para Veneza e para o sul da França. Mas, no fim do século XV, como escreveu Alberto Tenenti, os mercadores de Tana ficaram só na memória. Após sobreviverem a uma hoste de invasões do leste, os mercadores de escravos do Mar Negro foram fechados pela tomada de Constantinopla e de Dardanelos pelos turcos. Em Florença, o preço dos escravos subiu tão proibitivamente que logo se tornaram um luxo que somente nobres ou ricos mercadores tinham recursos para ter. As crianças negras seriam mantidas como animais de estimação e dadas como presentes nas cortes da Renascença de Mântua, Milão e Ferrara. Os corsários continuariam a fornecer um pequeno número de escravos, e os escravos trabalhariam nas grandes galés da Renascença. Mas com o fim de um comércio organizado de escravos, a instituição tornava-se cada vez mais associada ao sistema extorsivo de pirataria e de resgate.”
(Davis, David Brion, O problema da escravidão na cultura ocidental, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2001, pg. 51-53; 56-61)
È neste contexto medieval que a Igreja se constitui solidamente como uma Instituição que ocupa o cume de uma pirâmide social. Em sua posição privilegiada é detentora de um discurso que visa oferecer uma visão de mundo e explicar a ordem deste. Nisso está implícito a manutenção desta ordem. Em relação à escravidão a Igreja não era indiferente a esta, podendo-se dizer que ela era até mesmo conivente com a situação dos escravos visto ser ela mesmo detentora de inúmeros cativos.
“Os escravos pagãos, muçulmanos, heréticos ou cismáticos parecem ser todos tratados da mesma maneira, pelos eclesiásticos como pelos seus outros senhores. Na verdade, esta atitude das gentes da Igreja pode surpreender e chocar. De fato, estas inserem-se perfeitamente no seu meio social e seguem exatamente os usos dele. Todos os religiosos possuem, nos lugares em que a servidão faz parte dos costumes, escravos. Na Catalunha e na ilha de Maiorca, já o observamos, os mosteiros mantinham, imediatamente após a Reconquista, os seus grandes domínios rurais, por um lado, graças a uma mão-de-obra servil freqüentemente de origem longínqua. Nas grandes cidades do mundo mediterrânico, em Barcelona, em Gênova, em Marselha, , por exemplo, padres ou religiosos possuem um ou vários escravos domésticos. Os autos dos notários genoveses mostram, durante séculos, abades e superiores dos mosteiros da cidade, sobretudo para as comunidades de mulheres, a comprar e a vender escravos. Estes parecem mesmo freqüentemente mais numerosos do que o exigiriam as simples necessidades do serviço doméstico. Em Janeiro de 1396, as freiras de Santo Stefano de Sam Píer d’Arena tinham comprado – por intermédio do seu encarregado de negócios- uma mulher chamada Margarita, oferecida em praça pública por ocasião da sucessão do seu senhor, Agostinho de Mari; Margarita tinha prometido servir no seu convento durante seis anos, mas a abadessa, com o consentimento de cinco outras religiosas presentes, decide alugar os seus serviços a um fabricante de pano por um salário de doze libras. Eis portanto uma escrava comprada por freiras que não tinham ocupação para ela no seu convento, de modo que preferiram alugá-la a um terceiro. Estas religiosas, visto os seus nomes, pertenciam a famílias nobres da cidade e algumas podiam mesmo possuir, por conta própria, uma escrava consagrada à sua pessoa, para o seu serviço privado. Ainda em 1521, um nobre da cidade, Stefano di Grimaldi, vende a Mariola de Marinis, também ela nobre, religiosa no mosteiro de Santo Stefano, uma jovem de vinte e três anos chamada Caterina, de origem moura, garantida sem doenças nem vícios, e convertida; o seu preço atinge a soma bastante razoável de cento e cinqüenta libras, imediatamente pagas. E não faltam exemplos, no correr dos anos, destas mulheres vivendo em convento, acompanhadas e servidas por uma escrava doméstica comprada as suas custas. Além disso, as igrejas e os mosteiros recolhem por vezes escravos libertos mas ainda endividados; certos senhores confiam também a padres os filhos de escravos que não querem guardar em casa; os conventos podiam ainda alimentar crianças nascidas de mulheres escravas, abandonadas ou educadas na sua juventude por hospícios ou obras de caridade. Em Gênova, um ourives da cidade, Giuliano Vinacia, cede gratuitamente a um padre, da Igreja da Santa Maria delle Vigne, uma pequena escrava de três anos, Lucchina, de raça tártara, que é sua própria filha, nascida de sua escrava; isto, diz a fim de recompensar serviços que lhe prestou este padre, e também “por amor a justiça”.
Nenhum recenseamento preciso permite calcular mesmo grosseiramente o número de domésticos assim ligados aos estabelecimentos eclesiásticos ou à própria pessoa dos religioso. Em Gênova, os bens da Igreja ficam isentos de qualquer taxa imposta pela comuna e estes escravos não são portanto atingidos pela gabella sclavorum; não figuram no registro Líber sclavorum de 1458 que enumera todos os escravos um por um, por cada senhor, e que Domenico Gioffré utiliza para sua avaliação estatística da população servil na cidade e o estudo de sua evolução. Estas isenções fiscais reencontravam-se certamente então em quase todas as cidades.
Podemos imaginar cada mosteiro, o bispo, os cônegos da catedral, os padres das paróquias, servidos por grupos de escravos, homens e mulheres, mais ou menos numerosos, como eram em outros lugares, nas regiões situadas mais ao norte, por irmãos laicos ou domésticos livres?
Em Sevilha, os eclesiásticos rodeiam-se, para seu serviço pessoal, ainda mais talvez para a manutenção da comunidade e as construções e reparações dos edifícios, dum número muitas vezes espantoso de escravos, na verdade batizados, mas ainda reduzidos a condição servil. Em 1525, uma centena de escravos pertencem diretamente ao arcebispo, sem contar os dos dignatários do cabido, do deão, dos administradores – o Pertiguero, também o chantre -, simples cônegos, tal como Sancho de Matienzo, comprador de vários Negros de África, que acabou por fazer comércio deles e por enviar todo um contingente para as Índias Ocidentais. Aquele outro liberta à sua morte cinco escravos, e este outro seis. Este meio canônico, demasiadamente mal conhecido dos historiadores das sociedades urbanas, afirma-se por todo o lado como um grupo social particularmente rico e influente, bastantes ligado às melhores famílias da aristocracia. Alguns cônegos possuem vários servidores submetidos, não somente na catedral mas também em todas as outras colegiais, assim na de San Salvador cujos cônegos, também eles, libertam seus domésticos por testamento. Nas calle de lãs Gadas, mercado habitual para os cativos trazidos de África, vê-se também, entre os compradores, bispos das cidades por vezes afastadas de Sevilha, assim como arcediagos das grandes igrejas da própria cidade ou das cidades dos arredores.
Os conventos, sem dúvidas por causa da importância dos trabalhos domésticos e das obras comunitárias, não deixam de manter dentro das suas paredes numerosos servidores cativos, quer adquiridos no mercado, quer a maior parte das vezes trazidos pelos frades ou pelas freiras por ocasião de sua entrada na ordem, quer ainda deixados em doação pelos fiéis. Alguns trabalham fora, outros tem de respeitar a clausura.
Menos ricos certamente, os simples padres de pequenas igrejas, curas ou capelães, tem do mesmo modo em sua casa, segundo os seus meios, um dois, e mesmo três escravos, que os ajudam também a manter a igreja e os seguem nos seus deslocamentos.
Assim as sociedades das gentes da Igreja, a diferentes níveis de fortuna, de prestígio e de atividades, concebem pouco o serviço doméstico da coletividade fora da via da escravatura: nem governantas, nem domésticos livres, nem irmãos laicos.
Os mosteiros portugueses mantinham estritamente em dia listas, ou melhor, genealogias dos seus escravos que indicavam muito precisamente o seu número, com os nomes, as filiações e as profissões. Estas listas, conservadas ( Genealogia sarrecenorum ...), mostram grupos de várias dezenas de escravos por vezes, muito ocupados na cozinha, na guarda dos rebanhos e em todo o tipo de trabalhos ou de ofícios para a conservação das construções ou dos utensílios: pedreiros, carpinteiros, vidreiros, ferreiros, outros ocupados no fabrico das telas e dos panos.”
(Heers, Jacques; Escravos e servidão doméstica na idade média, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1983, pg. 79-81)
A documentação apresentada por Heers é longa e apresenta inúmeros episódio onde Igreja e escravidão são atores indissociáveis da narrativa histórica medieval. È interessante perceber que os membros do clero que, dentre outras funções espirituais estava a de evangelizar, negavam-se de fazêlo quando isso implicasse na perda de seus escravos. Visto existirem leis em certas cidades medievais que vieram a coibir a escravidão de cristãos, a conversão de não cristãos ao cristianismo mediante o batismo, imediatamente os tornava livres, desta forma, nos lugares onde esta lei secular vigorava a conversão era algo que a Igreja evitava entre seus cativos, mesmo que isso implicasse na perda de suas almas. Entretanto, existiam lugares, e esses eram a maioria, onde as leis ordinárias eram indiferentes quanto a crença de seus escravos, podendo estes ser cristãos ou não.
“Com efeito, o batismo não trás nenhuma outra consolação no imediato do que espiritual. O escravo tornado cristão faz parte da comunidade de fiéis, sente-se talvez menos estrangeiro, melhor reconhecido, e menos reconfortado pela solidariedade da oração e pela assistência espiritual dos padres. Pratica a mesma religião que os senhores, a maior parte das vezes nas mesmas igrejas. Não são elementos de modo algum negligenciáveis. Mas a condição jurídica e material destes neófitos não muda por isso, em todo o caso de imediato.
O escravo batizado permanece escravo: a doutrina da Igreja, a das diversas autoridades, por exemplo nas cidades da Itália, assim como a opinião pública nunca variaram neste ponto. Sachetti, por 1370, di-lo muito claramente, sem nenhuma nuance e mesmo com uma dureza pouco comum, nos seus sermões: o mesmo afirma, que “batizar um boi”.”
(Heers, Jacques; Escravos e servidão doméstica na idade média, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1983, pg.85)
A discussão teórica relativa a escravidão não está circunscrita a partir dos séculos XVI, com à escravidão dita moderna, ou ainda com os pensadores iluministas dos séculos XVII e XVIII, e nem mesmo apenas aos cientistas sociais do século XIX. Aristóteles, Filemom, Sêneca, São Paulo, Gaio, Ulpiano, Agostinho e Clemente de Alexandria são exemplos de quão antiga é a questão da escravatura enquanto instituição.Sendo a Igreja conivente e atuante quanto ao regime escravista, havia a necessidade de justificá-lo ética e religiosamente a fim de legitimá-lo.
Sendo a Igreja detentora do discurso ideológico que condicionava a visão de mundo do homem medieval caberia a ela prover tal justificativa. Os chamados Padres da Igreja, dos quais se destaca Agostinho, postulavam que os escravos estavam dentro de uma ordem natural da qual a divina providência era fonte ordenativa. O dogma do‘estado de graça’ conferia a existência de homens que haviam sido eleitos por Deus, e desta forma não estariam sujeitos à escravidão, pois a situação de ser um escravo implicava na desaprovação divina pelos pecados do indivíduo e sendo sua situação uma punição por estes. Esta idéia está presente na obra de Agostinho “Cidade de Deus”,Livro V e capítulo XI; Livro XIX e capítulo XV; o que é corroborada quase um milênio depois por Tomás de Aquino em sua obra “Sumula Teológica” Parte I da 2ª Parte, Questão 96, artigo IV. Contudo Agostinho cai em contradição quando na “Cidade de Deus” no Livro IV e capítulo III diz haver escravos bons e senhores maus. Sendo assim, a explicação anterior não justifica a situação do escravo.
A ética cristã é deontológica e universal. Os preceitos do Cristo e da caridade cristã são válidos em qualquer época e local e o contrário disso não justifica nenhuma tentativa de coerção de um homem sobre outro homem. Contudo, a Igreja na Idade Média legitima a coerção de um ser humano sobre o outro postulando ser detentora e porta voz dos ditames divinos e como Deus havia predestinado alguns para tal situação caberia a esses aceitar sua situação pois essa nada mais era que uma situação de um estado pecaminoso