Fotos: Reuters

Com todo o respeito à valorosa comunidade nipônica, pode-se dizer que os discursos de posse são como grupos de japoneses: muito semelhantes.
Todos os pronunciamentos inaugurais de presidentes da República têm um olhinho puxado para o lado social.
Dilma Rousseff não fugiu à regra, exceto por um detalhe. Embora prefira o conforto da calça comprida, a nova presidente vestiu saia neste sábado (1º).
Parecia determinada a engrandecer o pormenor que a distingue dos antecessores. Acentuou, já nas primeiras linhas, o fato de ser a primeira presidente mulher.
Embora a diferença de gênero não seja sinônimo de êxito, Dilma fez bem em realçá-la. A mulher frequenta o segundo plano desde 1500.
Na carta de Caminha a Portugal, espécie de discurso de posse de Cabral sobre a terra de Santa Cruz, a mulher merecera uma única e desairosa referência.
O ghost-writer de Cabral impressionara-se com a ausência de vestes dos nativos –“pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas".
Num pedaço de seu texto, Caminha distinguiu a proto-mulher brasileira: "[...] Vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras...".
À margem da indelicadeza assanhada, Caminha atribuiu prioridade ao ser humano. Informou à cora portuguesa: "...A terra em si é de muito bons ares...”
“...Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem...”
“...Porém, o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar essa gente".
Desde então, o salvamento dessa “gente” frequenta a retórica das posses. Dilma rendeu homenagens à prioridade que Lula atribuiu aos brasileiros pobres.
Prometeu continuar a política social de Lula, aprofundando-a. Projetou a erradicação da pobreza extrema.
No papel, idealiza um Brasil majoritariamente de classe média. Uma "classe média sólida e empreendedora''.
Em cerca de 40 minutos, Dilma leu no Congresso uma peça redigida sob a supervisão de Antonio Palocci, novo chefe da Casa Civil. Ela revisou e ajustou o texto.
Dilma verteu sobriedade sobre o microfone. Acenou com a ampliação do Prouni e a consolidação do SUS.
Beijou, uma vez mais, a cruz da estabilidade econômica. Disse que dará combate à inflação.
A volta do flagelo, afirmou, desorganizaria a economia e degradaria a renda do trabalhador.
Almeja a combinação de crescimento econômico com investimentos sociais. Algo que só será obtido com a manutenção da “estabilidade econômica como valor”.
Estendeu a mão à oposição. Emocinou-se ao pronunciar a seguinte frase: “Agora, sou a presidenta de todos os brasileiros”.
Parágrafos depois de ter elogiado Lula, fez uma concessão aos antecessores. Não citou nomes. Porém...
Porém, disse que muitos, a seu tempo, contribuíram para a prosperidade que o Brasil respira nos dias que correm.
À sua maneira, Dilma mimetizou o Lula de 2003, que, ao tomar posse, injetara no discurso um vocábulo extraído do dicionário do antecessor: "processo".
"...A mudança é um processo gradativo e continuado, não um simples ato de vontade, não um simples arroubo voluntarista", dissera o Lula de oito anos atrás.
"Ninguém pode colher os frutos antes de plantar as árvores", ele acrescentara, como que a reconhecer a importância da sombra que a copa do Real lhe proporcionaria.
Dilma declarou que prestigiará os organismos estatais de fiscalização e controle. "Não haverá compromisso com o erro, o desvio e o malfeito".
Nesse ponto, também repetiu Lula. Depois, no Planalto, seria cumprimentada por duas evidências de que a realidade sempre pode conspurcar os discursos: José Dirceu e Erenice Guerra.
Em defesa da liberdade de imprensa, reiterou que prefere o barulho da mídia livre ao silêncio das ditaduras.
Voltou a emocionar-se ao recordar os tempos de luta contra a ditadura. Rendeu homenagens aos companheiros que "tombaram pelo caminho''.
Evocou os quase três anos de prisão, período em que foi torturada. Disse ter suportado "adversidades mais extremas".
Acrescentou: "Não tenho qualquer arrependimento, tampouco ressentimento ou rancor''.
Ao sair do Congresso, Dilma protagonizou uma das cenas mais simbólicas de sua posse. Passou em revista as tropas, personificadas pelos Dragões da Independência.
Já na pele de presidente em chefe das Forças Armadas, recebeu a reverência da continência do comandante do destacamento. Ao cruzar pela bandeira nacional, beijou-a.